Comer compulsivamente para sobreviver psiquicamente?
- por Michele Birck
- 15 de ago. de 2019
- 3 min de leitura
Logo ao nascer, o bebê não possui recursos suficientes para escoar a energia pulsional, pois ele ainda não possui representações para drenar o afluxo energético. Por isso, a figura materna deve exercer para o bebê a tarefa para-excitação a qual, em termos simples, significa fornecer ao bebê palavras, significantes, representações para que ele possa investir a energia pulsional e se libertar do poder ameaçador que ela tem. Porém, nem todo indivíduo conta com um sistema [pai e mãe, em geral] que funcione adequadamente. E, dessa forma, quando o bebê não conta com essa função de para-excitação, ele se sente repetidamente angustiado.
Em tais casos, a única saída que resta para o bebê se constituir minimamente é se cegar diante da pulsão, o que McDougall (2013) chamou de ejetar o afeto do psiquismo ou desafetação. A pulsão continua presente, mas o indivíduo passa a viver como se ela não existisse, de modo que ele utiliza dela apenas o mínimo suficiente para se manter vivo, mas sem fazer dela uso libidinal algum, concebendo-a como potencialmente aniquiladora. É como se um afeto um pouco mais intenso fosse sentido como semelhante à situação de desespero que viveram quando bebês.
Então o indivíduo quando adulto utiliza a mesma defesa de quando era bebê: ejeta do psiquismo o afeto, tornando-se desafetado. A desafetação leva o indivíduo a encontrar nos atos [e não no trabalho mental, ou seja, na reflexão do que está sentindo] a única possibilidade de escoamento das tensões.
Constantemente somos mobilizados por percepções conflituosas, mesmo diante do esforço exercido pelo psiquismo para manter um equilíbrio que garanta a homeostase e preservação do aparelho psíquico. Na tentativa de defesa contra uma invasão catastrófica, certas experiências psíquicas sentidas como ameaçadoras, são excluídas do pensamento, além de não serem representadas. O objetivo, nesse caso, é eliminar da consciência emoções percebidas como traumáticas, sem qualquer pretensão de elaboração.

É possível que você que está lendo esse texto tenha vivenciado precocemente emoções intensas que ameaçaram seu sentimento de integridade e de identidade na época como, por exemplo, experiências de abandono, rejeição ou até mesmo algum tipo de abuso, seja moral, seja sexual. O trabalho psicológico é feito a partir da sua interpretação da experiência, mais do que a experiência em si, pois essa vivência fica armazenada em seu inconsciente e lhe causa muito sofrimento.
A fim de sobreviver psiquicamente, foi necessário erigir um sistema muito sólido para evitar o retorno de suas experiências traumáticas portadoras da ameaça de aniquilamento. O afeto é sentido como possível aniquilador e expulso do psiquismo, retornando para seu lugar de origem, o corpo, e gerando ali os sintomas mais danosos. A obesidade é um desses sintomas.
Nos desafetados o corpo se comporta de maneira ‘delirante’; ele ‘hiperfunciona’. O corpo enlouquece. Não é a incapacidade de vivenciar ou de exprimir uma emoção, mas sim de conter o excesso da experiência afetiva e, portanto, nessas condições, uma incapacidade de refletir sobre essa experiência (McDougall, 2013).
As dificuldades que quase inevitavelmente surgem no tratamento psicológico com esses pacientes decorrem de sua incapacidade de acreditar que poderiam ser ajudados, apesar do sofrimento que existe neles [isso faz sentido para você?]. Preferem negar ou destruir ofertas de auxílio a terem que mergulhar novamente nas experiências traumáticas do início da infância (McDougall, 2013).
O trabalho psicológico pode revelar uma estreita ligação deste modo de funcionamento com experiências traumáticas precoces vividas em uma fase infantil. Assim, a forte resistência à mudança apresentada pelo paciente desafetado, pode ser entendida como uma defesa diante da possibilidade de retorno do afeto ligado a este momento anterior, sentido como devastador. Observa-se uma autossabotagem e uma sabotagem no processo psicoterapêutico, por exemplo, quando o paciente falta às sessões ou quando conta várias desculpas e “historinhas” que o afastam do seu processo de cura.
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